Gabriel Galvão CONCLUSÃO 2017.1



Gabriel Galvão - Coletânea de Gratidões

16 de Março 2017

Eu agradeço à cenoura pelo fato de ter tomado novas formas entre os meus dedos, o que gerou em mim a percepção de que somos a mesma coisa em diversas dimensões.

21 de Março de 2017

Eu agradeço à Corda de Rami pelo de ter me permitido suspender o corpo no ar, o que gerou em mim as flutuações típicas da dança, tomou posse dos meus movimentos e conduziu minha certeza ao passo seguinte.

28 de Março de 2017

Eu agradeço aos repolhos e à cenoura pelo fato de terem me dado uma nova experiência com as cores, gerando em mim uma fome policromática.

6 de Abril de 2017

Eu agradeço ao filme "Camelos também choram" pelo fato de me permitir o acesso à uma realidade de nômades na Mongólia que de outra forma eu não encontraria com tamanha honestidade de síntese, fato que gerou em mim o alarde de redescobrir a multiplicidade das vidas partilhadas, entre pessoas e seu deserto, entre camelos e seus filhos. A lágrima ao final que compacta toda a trama documental no despertar de um olhar por parte da mãe camelo traz consigo a epopeia ancestral do encontro entre os seres vivos.

20 de Abril de 2017

Eu agradeço ao filme "Turista Espacial", dirigido por Coline Serreau, pelo fato de propor em seu curto tempo de duração uma dinâmica outra com a realidade então mecanizada e os servos subservientes que nos tornamos dela o que gerou em mim a curiosidade de arriscar a loucura, exagerar nos movimentos e quem sabe começar a usar um trapézio.

25 de Abril de 2017

Eu agradeço ao aipim pelo fato de ter participado de uma boa conversa e ter contribuído com ela por meio do seu cheiro, o que causou em mim o mesmo sossego na alma que é o sossego da sua textura sugerindo que as firmezas leves vão prevalecer. Preocupações são sistemáticas e passageiras, evaporam.

27 de Abril de 2017

Eu agradeço à farinha e à lentilha pelo fato de esquecerem ter limites e se misturarem, o que gerou em mim paciência para observar a transformação. O processo de descascar a lentilha descascou um pouco da minha carne também e despejou para fora o que havia de cansaço acumulado nos nós dos dedos.

2 de Maio de 2017

Eu agradeço à chicória, aos girassóis e à hortelã pelo fato de mancharem minhas mãos de verde, todo verde que pudessem inventar, o que gerou em mim a maciez na pele daquilo que germinou e se proliferou do mundo. Trouxe recordações inéditas sobre de onde vim.

9 de Maio de 2017

Eu agradeço à cebola pelo fato de me fazer chorar com seus gases mesmo enquanto eu estava satisfeito e misturar minhas emoções com óleo, o que gerou em mim uma sopa de inevitabilidades picotadas bagunçadas com o azedo e o salgado de cada partícula em uma única terra.

11 de Maio de 2017

Eu agradeço à areia pelo fato de brincar de mim, o que me gerou o esfarelamento. Tocando na terra, em pouco tempo camadas se formaram nas minhas mãos e já não pareciam anexas, mas sim a composição da minha própria pele, espaços vazios entre as informações que descubro e os desenhos que desfaço.

Dei para areia brasões, interrogações e uma coruja. Eu não sei como uma coruja voa, mas acho que sei. Esse achar é um quase que me impede de finalizar a arte da forma. Mas sei que o desenho é uma coruja. Outra pessoa saberá que é outra ave e ambos saberemos que elas podem voar. Coloquei a areia no rosto e pisquei os olhos. O instante passou e a terra já havia se movido. Coloquei mais, o coração sacudiu o corpo e toda areia sambou, passarela abaixo. Eu achava que não sabia desenhar.

Algumas das Gratidões não especificavam suas datas (erro meu):

Eu agradeço à beterraba e ao repolho pelo fato de serem macios e, transformados em outra coisa que completamente são também, afagaram os meus sentidos, gerando em mim a infância nova em brincar de massinha e se servir da fluidez fofa do que é vivo e arrisca se apreciar pelas mãos outras.

Eu agradeço às cenouras, cebolinhas e maçãs pelo fato de entreterem e mancharem minha intuição com seus cortes e movimentos secretos, o que gerou em mim a inevitabilidade da espera pelo que virá a seguir, o aguardo como catalisador do ambiente ao redor e sua personalidade de mutação constante. Esperar que viessem, que estivessem prontas, foi como desfilar pela própria vontade sem saber o caminho no qual incidirá e aceitando os equívocos que possam decorrer. É como o risco de se espantar.

Eu agradeço ao filme Ponto de Mutação, pelo fato de caminhar comigo numa locação idílica e performar todos os deslumbramentos das ênfases, o que gerou em mim o prazer de analogias inéditas e pueris sobre a distância entre os átomos, o propósito da ciência e onde depositar as armas que criamos em prol de um avanço regressivo. Todo caminho é novo, toda vida é instantânea, mas deve ser observada com esforço e dedicação.

16 de Maio de 2017

Eu agradeço às minhocas pelo fato de se reconstituírem passeando nos escombros de seu ecossistema, que gerou em mim a descoberta da ruína não como fim, mas caminho para uma nova mutação. Tanto dessas compostagens onde moram as minhocas são resquícios de formas passadas aglutinadas em um universo de leis inéditas e ainda assim ancestrais sob a terra. Agradeço ao gongolo e às papa-defunto pela companhia durante toda eternidade da minha vida orgânica, espelhada na terra e nas folhas secas.

18 de Maio de 2017

Eu agradeço às conchas pelo fato de serem arquitetura subaquática e assumirem as formas das ondas e a frequência da lua, o que gerou em mim interesse pela engenharia dos oceanos. Parece não haver conduta para o desenho que assimilam, pois não há regra que restrinja o mar, mas é disso que se trata as suas curvas: não há cantos. Acessei a comunicação com aquilo que não me pronuncia e derramei sobre meu rosto a feição de caramujos. Sobre meus supercílios, boa, nariz, qualquer movimento, um simples e costumeiro cerrar de sobrancelhas desabaria o que se deitou sem hesitação sobre mim pois não temia o não. Depositadas sobre meus traços, absorvi a anarquia de sua natureza no paradoxo de impedir minhas ações para nada sair do lugar. Não lembro outra situação em que a interrupção foi tão libertadora.

Na boca fechada me veio o gosto da música da água. Mas mais que o som da maré, me encantou o silêncio entre uma ressaca e outra. A música é também tudo que escolhe não preencher. Esses espaços ausentes são o próprio descanso dos náufragos. Quando eu amava as conchas, deslumbrava-me mesmo das que não escolhia. Não por rejeição, mas por entender a preciosidade do que não se optava. Afinal era preciso uma curadoria de piscina para entregar todas para minha mãe.

25 de Maio de 2017

Eu agradeço à argila pelo fato de brincar comigo, gerando ao meu lado um arquipélago de disformidade e incongruência, tentando construir uma lógica de mundinho com um material que se misturava com a minha mão. O que penso através disso é que nada do que criamos ou depositamos no mundo, tendo forma assumida ou não, se desvincula de nós. Não devemos viver um sistema de desvínculos onde boi sozinho se lambe melhor. A fome que não me dá de comer também tira o que posso dar. Não sou capaz de comer a argila, mas foi algum alimento sagrado acima do forro de jornal pelo qual espalhei ele.

30 de Maio de 2017

Eu agradeço aos ladrilhos pelo fato de nos servirem enquanto recipientes e enquanto telas em branco, gerando em mim a provocação intuitiva do ato de criar. Elementos diferentes dispostos na minha frente enquanto outras pessoas contemplam com a mesma admiração me convida a achar um pequeno espaço entre tantos onde possa coletar os pingos de limão que pensei para a textura de um castelo, o resíduo da manga enquanto sobrancelha para um desenho sem rosto. Fiquei curioso ao pensar em criar, fiquei salivando diante de um prato cheio. Minha boca fazia parte da composição. Comi e sorri com aquilo. Agradeço porque fiquei feliz e então durante o processo me vieram falar como sou bonito. Rosto bonito, olhos brilhantes. Se for verdade, meus olhos brilharam mais ouvindo. Tive uma semana difícil, tive tempos de tempestade e temo em deixar esclarecido isso carregando uma atmosfera pesada com meus passos. Me dizerem que sou bonito neste momento me faz sentir a beleza de uma batalha confrontada com dignidade.

Outras Gratidões

Os dias me escapam em segredo e na minha irredutível prepotência me suponho capaz de conter eles, capturar seus movimentos. Perco eles, perco seus números e sou tragado pela maré alta. Morei sempre perto do mar e essa aproximação parece ter me deixado mais suscetível aos caprichos da maresia e das temperaturas. Uso muito casaco e não tenho medo do calor. Nunca senti que tivesse medo do fogo, apreciei ele inúmeras vezes durante acampamentos, fazendas, viagens. Parecia um artefato luxuoso do qual poderíamos tirar proveito apenas. Eu fantasiava comer marshmallows ali porque era o que a televisão me sugeria. Não tive tais ilusões cumpridas.

Toda comunicação humana, dentre muitas das mais ancestrais alertam para o caráter destrutivo do fogo, sua combustão condenando ao fim tudo que se segue. Vivemos o paradoxo de adentrar e assumir experiências esperando uma mudança radical na nossa constituição, nas nossas percepções, ao mesmo tempo que somos infinitamente teimosos diante da possibilidade dessa transformação. Me incluo constantemente nessa imaturidade para não correr o risco de me achar menos tolo que os outros. E fui posto a prova novamente quando esta aula que entrei, ansioso porém empedernido, me fez desconhecer o fogo. Desacreditar no poder que ele anuncia em sua versão contida pelos humanos e suas poucas lenhas calculadas e me deslumbrar com seu papel de arauto nos incêndios, nos gases.

O fogo faz voar. Se é creditado a ele sempre a potência desintegradora, pouco se fala dessa outra versão do fim que ele oferece, quando carrega pelos seus ventos quentes balões desprendidos da civilização que orquestrou seus desenhos e sua geometria. Um trabalho que acarreta anos de esforço e imaginação se distancia da terra e assume uma nova existência ao abandonar tudo que conhecia.

O balão é o exercício de nascimento mais desapegado que já contemplei. A emoção no olhar dos baloeiros era de parto e mal pude saber reconhecer essa grandiosidade sem ter um ventre no meu coração. Mas senti a mudança causada pelo gás carbônico. E eu aprecio isso. É isso que foi gerado em mim.

Quanto à última aula, falhei em tropeços grandiosos. Mal consegui germinar com minhas mãos, entupido de tarefas acadêmicas diversas e tive de solicitar à minha mãe. Mal comprei os ingredientes na medida que queria. Não consegui moer como queria. Errar na cozinha parece o primeiro passo para qualquer coisa a partir dali, mas eu não estava numa cozinha. Contemplar tantos pratos ali executados me provocou um imediato ataque de pânico, do tipo que está cada vez mais recorrente na minha vida particular e estimulado pela rotina frenética e destemperada dos dias. Na minha fraqueza me trato como vítima do calendário.

Quando outras pessoas vieram somar e construir algo junto com os poucos pimentões que trouxe, uma pasta de amendoim e linhaça recheados, não via muita esperança na salvação daquele menu.

Logo quando começaram os depoimentos, senti as lágrimas chegarem. Eu estava tão profundamente grato por cada pequeno instante que me tremia todo em não ser capaz de apreender todo o potencial diante de mim. Todas as receitas, as palavras, as percepções. É tudo tão grande e nossa memória é tão seletiva que passado o momento só me restariam recortes fragmentados de toda a experiência.

Vi uma amiga chorar diante do prato que oferecia e das palavras que compartilhava. Sabia o tempo todo o risco das lágrimas, todavia na frente dela não poderia apresentar a covardia de não chorar. Toda a vulnerabilidade que eu tinha me foi exposta, extraída pelos pés como raízes. Eu tenho todo o medo do mundo de não ser fértil, de sobre minhas ações nada se colher, nada se plantar. Nenhuma minhoca caminhar sobre mim, nenhum encontro entre o céu e a terra numa cenoura.

A cozinha sempre foi espaço solitário pra mim, ícone de todo instante que abdiquei de um falso retiro familiar ou de quando fui abandonado pelo mesmo. Não havia encontros na minha culinária, apenas funções e desígnios. Não se trabalha em conjunto por não se intervir na tarefa do outro.

Criar comida, ser uma pessoa que cria ao invés de um predador, essa é uma perspectiva pela qual me fascinei. E é uma batalha que decidi comprar contra a própria podridão da minha carne já consumida por notas fiscais e restos conservados de tudo que já se foi. É um confronto que não interrompi, não estou sozinho nele. Me foi dada a possibilidade de criar ao invés de caçar, de pintar, de brincar. A energia que me preenchia diante de cada novo elemento que sempre conheci, mas nunca parei para conversar sem a distração das marcas e do empresarial, eu sinto que ainda tenho um pouco e quero mais.

Eu conheci tanta gente maravilhosa e de sorriso rico, corri o risco de não saber nada e errei em tanta coisa. Mas ao final de tudo, não quero direcionar minha gratidão para uma pessoa, mas a este ato de errar, o equívoco. Eu agradeço ao erro, pelo fato de não alcançar o que eu desejava se não fosse de genuína intenção, o que gerou em mim a determinação de tentar de novo.

Amei as aulas e sentirei falta de tudo. Mas amei mais do que tudo o que pude redescobrir.