Gratidões de Raquel Monteiro


Agradeço a explicação sobre a complementariedade entre nós e a Terra, pelo fato de ter revigorado em mim o sentimento e a responsabilidade do pertencimento, que gerou um ímpeto de força e maior sustentação no mundo.

Agradeço a experiência da teia viva, principalmente no momento em que as teias entraram umas nas outras, pelo fato de esta vivência ter me trazido um novo pensamento sobre o que é a identidade, assunto que muito me interessa. Compreendi, pela experiência do meu próprio corpo, que a identidade é uma estrutura dinâmica, com flexibilidade para se reorganizar a partir do contato com o outro e se reestruturar após esse contato, absorvendo uma nova configuração. Isso diz muito sobre o tempo político que estamos vivendo, com o crescimento do sentimento xenofóbico e do fascismo, modos de pensar e sentir que excluem a possibilidade dessa dinâmica essencial e se apegam à ideia de identidade fixa.

Agradeço a experiência da corda por ter me dado uma compreensão sobre maneiras possíveis e harmônicas de convívio, conjugam tanto coletividade e individualidade, que são ideias que parecem se opor, parecem jogar de forma oposta na organização social que temos vigente na sociedade. Sentir-se seguro numa teia me mostrou que é possível viver sem medo e, ao mesmo tempo, sem ter que se sobrecarregar para garantir a sobrevivência. Se cada um assumir suas responsabilidades de forma comprometida, todos podem se sentir seguros, com conforto, sem medo, sem pressa, sem correria. Foi a confirmação de que o mundo se sustenta sob uma organização afinada, consciente e dinâmica, com a qual podemos aprender para criar modos de vida mais saudáveis nas comunidades humanas. Ao contrário do que muitos pensam e querem fazer acreditar, o mundo não é um caos completo.

Agradeço à cenoura por trazer uma informação tão importante e fundamental quanto a união do céu e da terra. Tudo aquilo que podemos acessar intelectualmente sobre essa mística atemporal, que está presente em inúmeras tradições mitológicas, de variadas formas, também está acessível através da comida, em um alimento como a cenoura. Agradeço por essa consciência.

Agradeço o aprendizado do amor como uma força de oposição ao medo, como uma perspectiva que podemos escolher e uma força que desmonta a maldade. Isso reafirmou em mim a crença de que o amor é, de fato, a única forma de subverter a lógica de poder em que vivemos. Também me senti contemplada, segura e confortável em perceber que a minha inocência tem valor, quando o mundo nos diz o tempo todo que devemos criar uma armadura de proteção contra tudo.

Agradeço a oportunidade de ter refletido mais sobre o papel do homem na vida dos animais e dos animais na vida dos homens; ter percebido uma relação de reciprocidade e simbiose que favorece a evolução de ambos. A função do ritual nisso tudo é mágica e encantadora, algo que nossa sociedade precisa resgatar.

Agradeço por, através do conhecimento sobre a fermentação, ter percebido como é possível existirem relações e processos em que todos os organismos vivos são beneficiados. Em nossa sociedade, tendemos a acreditar que para um ganhar, alguém tem que perder algo.

Agradeço à beterraba pela cor fúcsia, que é uma das cores mais lindas e vibrantes que eu já vi, e que produz um suco doce que me fez descobrir o quanto nós realmente não precisamos de açúcar. Ao repolho e abóbora, agradeço por me mostrar que uma mesma substância pode provocar variadas nuances de sabor. Ao inhame, agradeço pela textura que serve como base para diversas e saborosas combinações.

Conchas são como galáxias

Elas obedecem um padrão elíptico, como nosso sistema solar. Elas são feitas de muitas linhas, que vêm de muitas camadas. São produto de uma sucessão de camadas. Seus desenhos na superfície são resultado da junção dos desenhos em todas essas camadas. Algumas são esmaltadas e lisinhas, outras são ásperas. As esmaltadas são mais resistentes que as ásperas. Talvez as ásperas tenham perdido as camadas lisas, gastas pela vida. É bonito ver como o acaso, as circunstâncias da vida e da fricção com o mundo trazem personalidade e unicidade a cada uma, que carrega suas próprias feridas casuais sobre uma estrutura de simetria perfeita. Ainda que tenhamos determinações naturais em nossa estrutura, o caminho do nosso desenvolvimento, as marcas que nos afetarão e nos darão identidade serão sempre moldadas pelo contato radical e espontâneo com a circunstancialidade da Vida. Como o sistema solar pode ser tão frágil e perene quanto uma concha? Uma das minhas conchas revela claramente seu processo de desgaste. Ela tem uma parte de sua camadas mais externa esmaltada e lisa, mas já revela, na outra metade, as camadas ásperas de baixo. Para onde foi aquilo que constituía sua pele mais externa? O que isso virou no mundo?

Agradeço à argila pelas informações que me transmitiu sobre o modo de ser e se afetar no mundo. A argila é uma mistura saudável de apego e desapego. Ela é como uma cola e preserva a união de suas partículas. Ao mesmo tempo, justamente por ser cola, está sempre disponível para o encontro com outros corpos. Ela pode se tornar Um com qualquer coisa, se adequar a qualquer realidade, não porque seja desapegada, mas justamente pela capacidade de manter a intensidade absoluta de contato a cada momento. A argila me ensina sobre possibilidades de perspectiva sobre nossa forma de se relacionar com os outros.

Agradeço a oportunidade de me conscientizar acerca da dimensão do problema da toxicidade na sociedade industrial. Com isso, apesar de sentir medo, porque me sinto impotente para transformar a realidade, posso minimizar os danos na minha vida e ao meu redor. Também percebo cada vez mais o quanto as tecnologias de guerra são protagonistas das nossas vidas, causando males que nós não conseguimos quantificar.

Aula da compostagem: agradeço aos microorganismos que esperam minha morte para que me decomponham e me ajudem a retornar para o ciclo da vida.

Agradeço à diversidade de texturas, cores, cheiros que a Mãe Terra nos provê em forma de alimentos, que nos permite as mais variadas combinações, para suprir as mais variadas necessidades. Isso me faz sentir nutrida em todos os aspectos, não somente nutricional, como estético e espiritual.

Agradeço à informação, à possibilidade de conhecer cada vez mais a cada dia que passa. A sensação é de que realmente conhecimento é poder: o que comemos, consumimos, vivemos - precisamos, antes de tudo, ter consciência. Agradeço por estar cada vez mais consciente racional e emocionalmente.

Agradeço aos mestres baloeiros por me apresentarem uma arte que me emocionou pelo gesto de Entrega que há nela. São artistas que fazem um trabalho extremamente cuidadoso e delicado, que exige tempo e dedicação, apenas para entregar tudo ao céu, sem apegos. Uma arte que envolve valores muito diferentes do que vemos hoje no mercado de arte, por exemplo, e na própria lógica dos museus, que giram em torno do ato de colecionar e acumular para preservar. Os baloeiros fazem sua arte para entregar e isso gera um fluxo de energia para o mundo. Mais do que um gesto artístico, é um gesto verdadeiramente ritualístico e espiritual, que envolve esferas mais profundas do nosso Ser.