Gratidões de Gloria Bina

 

Relatório da vivência:

Esse ano foi de intensas mudanças. Completando meus 20 anos, foi o tempo de firmar um relacionamento, sair da casa dos pais e experimentar essa vida nova. Foi tempo de me realinhar nos gastos, de realizar o sonho de morar em uma casa e de estar no meio da floresta. Foi tempo de adotar um primeiro cachorrinho que me acompanha nas travessias e brinca com os bichinhos que me visitam. Mas talvez o grande barato deste ano foi ter sido tempo de me reconectar com minha alimentação. Tive uma companheira que me propôs essa tentativa de um veganismo popular e de valorizar os agricultores locais, uma companheira que traçou essa trajetória comigo de repensar nossas compras, de nutrir a casa e montar nossa semana com alimentos frescos, recém colhidos, vivos. Juntas pensávamos no almoço de cada dia, na lista de verduras de cada feira, na quantidade de grãos, de castanhas, na busca por receitas alternativas, na consciência e necessidade diária de adaptar nossa alimentação para a dinâmica de vida dos alimentos que amadureciam cada um no seu tempo. A cada terça e quinta nos juntávamos as duas enquanto adiantávamos o corte dos legumes, a lavagem das verduras e a germinação dos grãos para ouvir as historietas da mestra dos meus pais. Aquela que sempre ouvi falar, que sempre era lembrada nas feituras vivas de casa, no suco de cada manhã. Ouvi ditados antigos, relembrei de como adormecia ouvindo as canções que minha mãe cantava quando deitava do meu lado. Cruzei com o Essênios e sua ciência-bruxa que levou Jesus a ser lenda, visitei Ann Wigmore germinando os grãos para dar aos soldados feridos sobre seus cuidados, e vivi por uma primeira vez parte da vida em construção que meus pais formaram juntos, suas viagens, vivências e aprendizados. E assim veio sendo esse segundo semestre de pandemia, de quarentena e de isolamento. De certo modo, a restrição se tornou para mim uma libertação. Foi quando consegui tempo e estímulo para pisar na corda bamba da instabilidade e tomar coragem para tantas mudanças significativas. É daí que tomei parte para começar este relatório e fiz sentido nas minhas gratidões, pensando que elas possam ser o próprio processo que vivi. No canto Kayapó de ralar aipim quando lembrei da canção de minha mãe, e depois revivendo a seu modo no vídeo da bata do milho, na Bahia. Ou quando vi minhas mãos vermelhas ao tirar o suco da beterraba e lembrei de quando convenci minha irmã a experimentar o suco dela com cenoura, apenas por tê-lo introduzido em brincadeiras de colorir a pele. Foi também onde me instiguei a mudar muitos modos de fazer coisas que já achava “prontas” por serem veganas, e assim senti o gosto real do amendoim cru, sem quentura, batido com cacau feito da semente nas sobremesas de alguns dos dias. A feira semanal mudou, o cacau virou quase obrigatório e assim vivíamos cada dia o esforço de levar as sementes para o campo, já que a casa quase que não pega sol. Vi minha companheira com os olhos brilhantes quando pegávamos as sementes já douradas, e assim fomos nos apaixonando de outras formas, por outros sentidos. Os mesmos olhos que me olhavam quando aos poucos íamos reconstruindo nossos cafés da manhã e aproveitando as sementes de girassol que, antes guardadas sem destino certo, agora têm sido nosso desejo de todo dia. Hoje posso dizer que a alimentação fez construir grande parte desse amor, e assim me reconheço como filha de quem sou, como fruto dessa terra. Por fim, trago aqui alguns recortes deste relato, para que seja uma tentativa de trazer quem lê para o que vivi, e assim possamos compartilhar o que foi compartilhado comigo.

 

Processos

Feitura dos docinhos coloridos com o suco da beterraba





 

Queijinhos de soja



 

“Torra” do cacau

 

Pastinha de semente de girassol com alho

 

Algumas das feirinhas de sábado que formam nossa base de alimentação da semana





agradeço à beterraba
pelo fato de avermelhar minhas mãos
que gerou em mim a sensação de pulsar o sangue de um coração

agradeço ao aipim
pelo fato de ter seu canto próprio
que gerou em mim a lembrança do afeto

agradeço à manga e ao mamão
pelo fato de trazerem doçura
que gerou em mim o doce da vida

agradeço à tangerina
pelo fato de explodir na boca
que gerou em mim um azedinho gostoso

agradeço ao cacau
pelo fato de dourar ao sol
que gerou em mim a vontade de fazer o mesmo

agradeço ao girassol
pelo fato de ter sementes de luz
que gerou em mim uma nova preferência de café da manhã

agradeço ao grão de bico e a lentilha
pelo fato de serem tão versáteis
que gerou em mim uma multiplicidade de sabores

agradeço ao trigo
pelo fato de alimentar a tantos povos
que gerou em mim um passeio pela História

agradeço às castanhas
pelo fato de serem tão intensas
que gerou em mim um tanto de vício, confesso

agradeço ao amendoim
pelo fato de brotar tão fácil
que gerou em mim o desejo de cultivá-lo

agradeço ao limão
pelo fato de ter tanta presença
que gerou em mim uma careta

 

Quiche de Girassol
Ingredientes

Recheio: 6 col de semente de girassol germinadas, 1/2 limão, 2 dentes de alho, uma colherinha de sal e tempero a gosto (salsinha, noz moscada, tomilho etc) Massa: aveia germinada, castanha do Pará germinada e moída

Vai adicionando um pouco mais de cada se precisar até dar para moldar direitinho. Faz a forminha na mão do tamanho que quiser e depois é só colocar o creme dentro e os verdes em cima. Coloquei salsinha e cebolinha.





 

Passo a passo





















 

A coalhada é uma comida típica libanesa e o avô de Leticia era de lá, veio refugiado. Ele gostava de fazer grandes comilanças com comidas tradicionais pra família e daí surgiu o costume de manter essas ceias mesmo quando ele já havia partido. Foi com eles que aprendi a comer maxixe, doce de gergelim, bauru, legumes recheados e tantas outras receitas tradicionais. Uma delas era a coalhada, uma receita que, na versão libanesa, é extremamente demorada, cheia de processos e custa alguns dias pra ser preparada. Quem aprendeu a fazer foi o primo, que levou em um dos eventos da família no início do ano e foi a primeira vez que experimentei. Foi a lembrança desse dia que me instigou a buscar esse mesmo prazer, mas agora em um processo vivo. A coalhada é feita de yogurte e leite fermentado, e como venho cortando derivados de leite da alimentação por conta de algumas manifestações de alergia, me pareceu uma ideia ainda mais interessante testar dessa nova forma. Por isso a escolha de fazer com poucos temperos e caprichado no limão, buscando o mesmo azedinho que a do primo tinha, a mesma brancura que a semente e o leite tem em comum, e a mesma textura mais pastosa e "embolotadinha". Foi um sucesso! Lembrou demaaaais e supriu tanto quanto, se não mais, o prazer que tive ao comer a outra. Custou boas lembranças da família e acabou por juntar as duas: na casa de Leticia comiam coalhada, e na de minha avó o prato preferido e garantido era o empadão. Aí pronto, fiz empadinha de “coalhada” :)