Ana, tenho escrito muitas coisas a respeito dessa experiência de tomada de consciência. Estou comendo só vivo há quase um mês, depois de brincar de morto-vivo durante um ano. Agora não dá mais. Acho que depois de saber disso, não dá pra conviver com a consciência sem mudar os hábitos por completo. No momento estou vivendo uma confusão tamanha que não consigo ainda botar isso em verbo. Estou escrevendo por e-mail, assim eu posso mudar de idéia mais rápido. aí vai:

Corpo de prova
da boca pra dentro da boca pra fora

Mexer na matéria do mundo começando por aquela que entra pela boca adentro é muito forte. é mexer na espessura do limite do seu próprio corpo. A consciência dos atos vai corroendo os hábitos sem sentido. assumir o corpo como corpo de prova, vendo que a sua realidade você é que inventa, isso é impressionante. o óbvio é tão simples que você não vê, está logo aqui, pra onde quer que você olhe. cada gesto do cotidiano passa a ter sentido, gradualmente o dia-a-dia fica claro. estou me beliscando com os olhos agora, pra ver se é isso mesmo. cada livro que eu pego, uma palavra aqui, uma frase ali, parece que todos dizem ou buscam a mesma coisa. descobri mesmo é que eu amo a realidade, seja lá o que essa palavra signifique.

Estupidamente entupidos
vidros fechados, ar condicionado, óculos escuros, fones no ouvido, todos os buracos do corpo estão tapados, inclusive os espaços de dentro. tudo estupidamente entupido. hálguma coisa abafada lá dentro que pede pra sair, se desespera de esperar. de repente você ouve alguma coisa, se desperta, alguma coisa que bate do lado de fora querendo conversar com o que há muito já está dentro, tudo isso que a gente já sabe, e que tem que acordar.
agora só me interessa ler e ouvir coisas que me desestabilizem, que me movam para a mudança de pensamento e para a ação, que mudem o meu agir no cotidiano. os jornais não interessam, a televisão não interessa, a sensação é de que estou ficando muito distante das outras pessoas.

Os hábitos
A força dos hábitos que corroem o dia-a-dia vai se desmanchando. Toda e qualquer tentativa pequena vai devagarinho dissolvendo a apatia desses gestos fundados em pura repetição . A consciência toma conta e inverte o estado de coisas. o mundo fica de cabeça pra baixo, parece.

Exercícios para a recuperação do brilho dos olhos
olho de criança de novo habitando o olho da gente. às vezes eu me sinto muito ingênua. as coisas vêm na antepalavra outra vez de anteverbo. tomar a palavra pela coisa abafa e mata a realidade e suas infinitas possibilidades de antes do nome. experiências são antes das palavras embora elas também contenham um infinito em si mesmas. não nomear as coisas abre caminho para as infinitas combinações de realidade. talvez isso seja a liberdade.
cada dia que como uma coisa completamente diferente da outra agradeço que ainda tenho todos os outros dias da minha vida para continuar me surpreendendo com as coisas e como elas e as pessoas são tão diferentes das outras e o quanto isso é impressionante. só falta agora ouvir a minha tarefa de vida aqui na terra, preciso ficar consciente dela. o sentimento de urgência de-não-sei-o-que me move sem explicação há algum tempo. as coisas estão ficando mais claras agora, mas não totalmente. sei que está em cima do meu nariz, por isso não consigo ver e ainda não está claro.

Qual a espessura do limite?
Nunca havia experimentado o fluxo constante de consciência. fluxo constante de estar consciente no mundo e de agir criativamente com os outros e com a matéria.. agora quando se está em um lugar se está por inteiro, todas as experiências são válidas. os lugares de passagem não são mais somente os espaços que têm de ser percorridos para que se chegue a um determinado ponto, agora eles são. cada momento é. o limite entre um estado e outro é sutil, depende de um leve despertar, um pequeno tremor, um arrepio na pestana dos olhos da consciência que de repente se conecta por completo. agora foi. uma confusão completa e absurdamente silenciosa ainda acontece agora. acho que vou ter que repensar tudo o que já pensei até agora e deixar sempre as coisas suspensas em meio líquido dentro da cabeça. E agora, o que é que eu vou fazer da minha vida?