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Rio de Janeiro, 25 de novembro de 2003

 

Calissa Rosa Sartorato

Nutricionista- Sanitarista

  

I CONGRESSO BRASILEIRO DE AGROECOLOGIA

 

Terminou na sexta-feira passada, em Porto Alegre, o evento que conseguiu reunir cerca de 3300 participantes brasileiros, em sua maioria,além de outros tantos congressistas de 12 países, tais como, Espanha, Argentina, Cuba, Costa Rica, Uruguai, México,Equador, um número expressivo de estudantes, alguns agricultores, permeado por instituições relacionadas ao tema, como a Embrapa, Emater, algumas universidades federais, entre elas, a rural do Rio. Apresentando-se em 4 grupos temáticos,sociedade e natureza; desenvolvimento rural; uso e conservação dos recursos naturais e manejo de agroecossistemas sustentáveis, distribuídos em apresentações orais e posters, em um total de 400 trabalhos científicos.

Consideramos, a priori, que foi um belíssimo manifesto de amor à vida, se levarmos em conta os trabalhos apresentados pela professora Ana Branco cuja contribuição levou à reflexão grande parte dos participantes desconhecedores  da singela bebida à base de folhas verdes escuras, cenoura, pepino, maçã e do sumo das sementes de trigo germinado que se torna 20000 vezes mais energético, tornando-se bastante revitalizador, em épocas de agrotóxicos, adubos, fertilizantes, hormônios, antibióticos, aditivos químicos presentes nos alimentos, contaminação da água potável, do ar que se respira, da irradiação de alimentos como forma de preservação e, a mais recente conquista científica, a transgenia...

A pesquisa da Ana Branco não se restringe apenas a oferecer “ sucos de luz”, assim denominados, aleatoriamente. A maior mensagem que pairou no ar, durante a sua apresentação, foi o reconhecimento do amor à vida, qualquer vida animal, vegetal, mineral. Ao planeta Terra que nos acolhe no seu grande útero, aos frutos da terra, aos diferentes povos da floresta,  à luz, aos diferenciados tipos de solos para acolher as infinitas sementes brotadas do chão para nos manter vivos, saudáveis, receptivos a tantos bilhões de outros seres existentes no planeta tão desconhecidos nossos, porém, não menos que nossos irmãos desamparados, entristecidos pelas guerras, pelo ódio fraticido que diariamente enchem nossos olhos e mentes  de horror, de sangue, de fragmentação do ser humano criado à semelhança de Deus...

A pesquisa da Ana Branco grita por nós. Há um chamamento explícito naquelas delicadas palavras, a partir da semente de trigo que foi distribuída, mão-a mão, no interior daquele auditório repleto, perto de 1000 pessoas confortavelmente sentadas, sentindo-se parte e não parte daquela chamada conferência, dessemelhante àquelas conferências badaladas, notadamente científicas, mas de muito pouco acesso à grande população que nem sequer sabem de sua existência, e que certamente, nunca saberão, porque pesquisa-se neste país para dar status à determinada instituição ou ao pesquisador que foi pesquisar dentro da linha de seu orientador.

Por que se pesquisa neste país onde milhões de brasileiros são desnutridos, subnutridos, famintos de “pão e de beleza” no transcorrer de suas singelas vidas, abandonados nos cerrados, nos semi-áridos, nos grandes centros urbanos, à mercê de uns trocados nos semáforos, sinais ou sinaleiras como dizem os gaúchos?

Qual das biotecnologias aplicadas à agricultura moderna, nos tornará mais afeitos à dor de nosso irmão faminto?

Qual das biotecnologias aplicadas à agricultura moderna nos dará a certeza de que os alimentos básicos da alimentação humana estarão contemplados na sacola do mercado, na hora da compra dos alimentos?

Afinal, o que é alimento, para que serve, dentro da conjuntura atual, modernizadora, não- ecológica, carregada de substâncias químicas alienantes no processo de vida & saúde?

Retornemos à Ana Branco. Sua presença naquele evento foi um raio de luz misterioso, ensinando aos presentes a preparar o suco da vida, toda paramentada, de avental, acompanhada de um liquidificador que arranhava o som direto no gravador, sob os olhares e as crenças e descrenças de tantos que ainda ignoravam a magia e a mística daquele encontro não usual.

Outra pesquisadora “alternativa” que lá se apresentou, quase encerrando o evento, foi a Clara Brandão, conhecedora dos mistérios da terra do sol do oriente, nos deixou outra mensagem que eu diria semelhante ou da mesma origem que a da Ana Branco.

Clara cuida de resgatar da  memória universal, a importância das plantas comestíveis, dos cuidados com a saúde das crianças, das mulheres, dos idosos, principalmente, e como identificar na natureza os benefícios à saúde, já tão esquecidos ou transformados por força da mídia que todos os dias “martela”  nossa cabeça para comprar determinado produto que nada tem de alimentício. Uma vez, questionando o uso de aditivos químicos nos alimentos, em conversa com  pesquisador de reconhecida universidade brasileira, deparei-me com resposta absolutamente absurda, mas que a ele conferiam-se títulos e méritos, numa lógica absolutista, encarregada de nos trazer à luz, o progresso, o desenvolvimento do conhecimento de que tantos não sabem e nunca saberão.

Dessas duas palestras, ricamente apresentadas, pois nos coloca no centro das discussões como elemento imprescindível e fundamental à existência do ser humano vivendo sobre a face da terra, nos leva a acreditar, cada vez com mais certeza, que precisamos nos solidarizar e consagrar os produtos da terra, razão de nossa existência, com seriedade e responsabilidade para com todos os seres do mundo. Portanto, a vida dos seres humanos, cada uma per se  é única, não havendo espaço para imaginarmos “ detentores do poder” em fazer e desfazer à sua total revelia.

Don Mauro Morelli levou a sua contribuição aos congressistas com muito entusiasmo e bastante questionador da sociedade em que  vive, já em boa fase de recuperação, após  acidente de carro sofrido em julho passado. Referindo-se à soberania alimentar e sustentabilidade, disse-nos que não temos que ser contra a fome. Ter fome é saudável. Temos é que nos valer da cidadania para que todos possam fazer suas refeições, decentemente, em torno da mesa e cercado dos familiares, como antigamente, e não ficar esperando por tickets do governo, e sobretudo, pressionar os governantes locais.Don Mauro também não poupou crítica à ausência do Ministério da Saúde naquele evento, da urgência da reforma agrária e da qualidade e quantidade dos alimentos compondo a refeição. Foi um belo testemunho do Bispo de Duque de Caxias que não agüenta mais ouvir mãe reclamando de fome.

A programação do evento que durou 4 dias, em Porto Alegre, esteve plena de contribuições, que eu diria sustentáveis, em que se considere a especificidade dos temas relevantes, no momento em que se busca o paradigma para a sobrevivência dos humanos neste planeta.

Cabe-nos aqui registrar os “compromissos individuais e coletivos” de forma relevante bem colocados pelo professor Martins da Universidade Católica de Pelotas, sobre a inserção da academia na comunidade, em que pese a população rural caminhando em busca de terra para plantar e viver, e o comportamento alienado da instituição que expulsou os sem- terra quando ocuparam parte da área da universidade.

Ainda visto pelos mesmos prismas,porém em sentido contrário, houve um questionamento por parte da assembléia quanto à permanência dos acadêmicos pesquisando, fora do país,  e o que isso significaria, de fato, para os brasileiros. Esta situação remete-nos, igualmente, a nos colocar diante da sociedade e nos questionar o que se pesquisa, para que e para quem se investe tanto em trabalhos científicos que nunca serão lidos por parte significativa da população alfabetizada e, muitas vezes, não terão sequer qualquer retorno para a sociedade que sustenta e mantém as universidades públicas. Evidentemente que não estou negando os valores que devem ser cultivados e desenvolvidos pela intelligentzia, em nome da sociedade, valores esses inalienáveis e, portanto, compreensíveis, porquanto  seres em constante transformação, em processo de evolução. Por outro lado, a academia muitas vezes não se percebe que somos seres em conflito, complementares, cultural e socialmente falando dessemelhantes,  vivendo nesta escalada de sobrevivência.

A compreensão que se tentou fazer, ficou por fazer, na plenária que habitualmente se ordena com os pares, sobre as decisões relevantes do que se discutiu durante todos os dias do evento, e não apenas o pensamento de uma minoria arbitrária que se manifestou em nome de cerca de 3300 congressistas, relegando a  segundo plano, a presença manifesta das pessoas naquele auditório. A “Carta Agroecológica”, assim denominada, feriu os princípios de respeito e solidariedade à vida por não incluir o apoio à reforma agrária sustentável, às populações ribeirinhas, às atingidas pelas barragens, aos povos da floresta, aos povos indígenas, aos quilombos remanescentes, aos pequenos produtores rurais, à produção orgânica de alimentos, enfim à sobrevivência neste planeta com todas as mazelas conhecidas e as desconhecidas, como a transgenia de plantas e microrganismos.

A observação que se faz, é que os congressos, os seminários, qualquer nome que se dê a esses encontros científicos, em nome da agroecologia, reflita por fim, a troca de conhecimentos objetivando incluir todos os segmentos da sociedade, com suas dimensões e  discussões inerentes, e aqueles, para os quais não temos resposta.

Sejamos humildes sem sermos humilhados por lutarmos por um mundo melhor, em que todos estejam incluídos neste processo de vida.

 

 

Rio de Janeiro, 25 de novembro de 2003

 

Calissa Rosa Sartorato

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e-mail: ana.branco@uol.com.br

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